quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Novo conto - Possivelmente estará no próximo livro... Comentem

Madrugada

O gato preto ia do quarto para a cozinha.
No único corredor do apartamento andava rente à parede.
Sentido banheiro.
Sentia a umidade.
Por debaixo da porta via um feixe de luz que se movia e invadia parte do estreito corredor, vinha acompanhado de vapor d´água.
Seguia a sombra e as nuvens.
M O V I M E N T O . . . M O V I M E N T O
Sentia o cheiro quente.
Gostava de ouvir o barulho que vinha do outro lado, que por ser contínuo deixava-o em transe.
Ssssom de cachoeira.
Fechava os olhos e respirava, parecia dormir em forma de estátua egípcia; somente o rabo se movimentava, leve e constante; direita, esquerda.
Esfinge em movimento.
Quando o barulho de água se extinguia sentia de volta a sua realidade.
Os sons, mesmo habituais, o fazia às vezes olhar para os lados, pesquisar longe o que caia, o que buzinava, o que gritava.
Tentava fazer o corredor mais longo, assim ia no sentido da cozinha em zig-zag. Passos curtos, de maneira que o percurso tivesse maior duração.
relógio
Às vezes parava e olhava para cima. Gostava de ver o teto.
Algo sempre o chamou a atenção alí.
Parava e olhava.
Parava e olhava.
Parava, sentava e olhava, com a ponta do rabo balançando.
Olhava fixo.
Esfinge em movimento.
Sentia a sua liberdade nas madrugadas.
Meia lua de relógio.
Casa escura, ecos, cheia de segredos, ecos, sons, sombras, ecos.
O abajur que era fera, de manhã, era abajur, a concha de feijão que era mistério e movimento, de manhã, era concha de feijão e o saco plástico que era susto e deformidade, de manhã, era saco plástico.
Na outra madrugada tudo novamente selva.
SEGREDO
Gostava de libertar seus instintos mais primitivos quando, em qualquer esquina, se encontrava com a outra, que o esperava já no mesmo lugar de todas as noites.
Ele a olhava, com as pupilas dilatadas, ela, da mesma maneira, apreciava a sua presa; alguns instantes, longos.
Saboreavam o desejo da perseguição, um aguardava o outro, pois sabiam que o segundo golpe é de fato certeiro e, como em contrato, cada noite um rasgava os tacos no sentido do outro, que se fazia maior, e sem misericórdia mordia o pescoço de seu inimigo.
Alvinegro Kama Sutra Yin-Yang
Corriam rente às paredes de todo o apartamento, subindo nas mesas, camas, armários.
Conheciam cada centímetro de seu lugar, porém, quando algo chamava a atenção paravam a luta mortal:
bolsa
mosquito
luz de lanterna que refletia
Logo ele deixava a luta, não como ferido, nem como vitorioso, mas como burocrata em término de contrato, deixando nela instintos não saciados.
Mesmo alto o oitavo andar não o amedrontava.
Por volta das duas, brisa da direita para a esquerda, saía com ar de austeridade.
Não ia até a beira da varanda, não olhava para baixo, fixamente para frente, [Esfinge] às vezes seguia como selvagem algum mosquito, tentando acertá-lo [Simba].
Ali deitava e esticava as pernas, deixando com que uma das patas dianteiras tocasse no nylon da tela de proteção.
Respirava fundo e fechava e abria os olhos constantemente.
Gostava de ver os poucos focos de luz dos apartamentos no edifício à frente. Certamente haveria neles algum dos seus, também seriam donos de seus lugares.
Aristocratas
Via pontos acenderem, apagarem, acenderem, apagarem.
Da direita, da esquerda.
Formavam desenho.
C o r e s.
Um homem que gritava na rua. Era o lixeiro, com o seu caminhão de apito.
Este som o deixava afoito, fazia com que se levantasse e andasse em círculos.
Andava na mesma frequência do apito.
Todas as noites.
Fazia sons guturais como se conversasse com os homens na madrugada, com os assovios, as buzinas, os choros de criança, os pipocos das motos.
Suas pupilas conversavam com as luzes, com os faróis, com as cores das telas de tv do outro lado. Paredes coloridas.
Na varanda havia um sensor, que quando provocado fazia acender uma luz lateral.
Nas noites de calor, por volta das três horas ele passava exatamente na linha que promovia o fenômeno.
Sabia que aquela luz atraia alguns insetos, e adorava quando um desses fosse uma mariposa, grande, rápida.
Assim que ela aparecia ele instintivamente pulava em sua direção. Pulava por sobre uma cadeira que ficava debaixo da lâmpada e de lá tentava acertar um jab de direita no bicho.
Não o matava.
Fazia com que o adversário voasse para dentro do apartamento.
Esfinge caçadora
Provocava e o deixava voar para a escuridão dos móveis; assim podia, com segurança, diversão e animalidade, caçá-lo.
Algumas noites cumpria o ritual em poucos minutos, e quando isso acontecia ele, mordendo levemente as asas do bicho, levava-o novamente à varanda, soltava-o em direção a sala, e tudo recomeçava.
Esfinge caçadora em replay
Quando não tinha a sorte de encontrar uma mariposa, se divertia com alguns pernilongos.
Zummm infernal. Se irritava.
Certa noite, antes mesmo de chegar a hora de acender a luz da varanda, viu algo realmente novo, um pequeno ponto iluminado, que no início se confundia com uma das janelas dos apartamentos à frente.
Ia em sua direção sem respeitar uma trajetória lógica.
Acendia. Apagava. Acendia. Apagava. Longo. Curto. Apagava. Acendia.
Como nunca tinha visto algo parecido, o bichano se amedrontou. Se colocou quadrúpede, em alerta.
Em uma última tentativa de reconhecer o novo objeto, deixou com que o vaga-lume deitasse em seu nariz.
Por três segundos se olharam.
O inseto ganhou a luta, fez com que o seu adversário saísse em disparada em direção a uma das prateleiras da estante da sala, lá se encolhendo até que o estranho elemento desaparecesse.
Esfinge atrás de Dostoiévski
Sua briga com os seres noturnos nunca ultrapassavam às quatro da manhã.
Às quatro alguém sempre se levantava para ir ao banheiro.
No horário marcado estava a postos, na porta do cômodo.
Levantavam, acendiam as luzes do corredor.
Ele estava lá.
Esfinge seca
Olhares cúmplices.
Entravam juntos e o bichano pulava em direção ao lavatório, onde encontrava seu paraíso, a torneira aberta em um fio de água que refrescava sua língua durante minutos.
Esfinge úmida
Assim que ambos acabavam, novamente trocavam olhares cúmplices. O bichano recebia forte carinho nas costas e descia.
Via os passos cessarem, as luzes diminuírem e tudo voltava a ser selva, escura e enigmática.
SEGREDO conhecido
Acreditando que a noite não reservaria mais nada de incomum, escutava o urro feroz de uma besta.
Levantava-se e ia devagar em direção ao som.
Suas orelhas apontavam a direção.
Ia rente às paredes, assim poderia se esquivar de um golpe.
No meio do caminho, quase à entrada da cozinha hesitava.
Percebia que o som ganhava intensidade, e acreditando que o monstro poderia estar indo ao seu encontro corria para seu esconderijo na estante.
Esfinge atrás de Dostoiévski
Sentia o mostro engasgar.
Talvez tivesse engolido sua companheira de luta.
S I L Ê N C I O
Tomando-se de coragem resolvia enfrentar. Morderia diretamente o pescoço da fera, do lado direito.
Passos l e n t o s.
Orelhas como radar.
Olhava para o teto.
Seguia em direção ao quarto.
O urro
Um som sem fome, tranquilo e constante.
De debaixo da cama podia ouvir cada vez mais próxima a respiração arranhada.
Subia na cama com coragem.
Via a fera e seu estômago, cheio, movimentando-se em digestão macabra.
Subia delicadamente na barriga da besta, chegava próximo ao seu pescoço, ensaiava a mordida, mas em movimento rápido a besta acertava, sem piedade, a cara do bichano, derrubando-o da cama.
Caia como todos de sua expécie, com as quatro patas, em equiíbrio.
Antes que o mostro pudesse esboçar qualquer outro movimento violento, resolveu sair, com o rabo trêmulo.
Esfinge assustada
À partir das cinco iniciava uma ronda de re-reconhecimento.
SEGREDO mais que conhecido
Os corredores e cômodos do apartamento formavam algo parecido com uma flor, constituida de cinco pétalas.
Um quarto grande, um escritório pequeno, um banheiro, a sala e uma grande cozinha.
Fazia
o percurso da
flor,
andava devagar cada pétala, cheirava cada canto, cada móvel, não subia neles, procurava algo pelo chão, pelas fendas e por debaixo dos móveis com a pata, quando não alcançava os lugares mais ermos com o focinho.
Fazia todo o caminho algumas dezenas de vezes.
Ia cada vez mais devagar.
Procurava algo ainda desconhecido.
SEGREDO sem segredos
Muitas vezes encontrava no banheiro, lugar úmido que adorava.
Achava algo que quando batia se desmanchava, e que quando caía no chão tentava fugir, deixando rastro.
O rolo de papel higiênico. Gostava de levá-lo ao corredor, com cuidado, e lá travar uma luta mortal com o que seria um interminável tentáculo, ou uma cobra venenosa.
Mordia o réptil, e com um ar de superioridade o deixava viver, por alguns momentos saía e deixava o animal agonizando, ferido.
No final do corredor se voltava novamente ao inimigo, baixava as pernas dianteiras e levantava as traseiras; olhava fixamente para a presa, já quase morta, tomava impulso e, como um ráio, pulava na presa.
Às vezes escorregava e batia com a cabeça em uma das paredes.
Ali, e naquele horário, utilizava-se de suas últimas forças instintivas para liquidar com aquele ser enigmático.
Fazia-o em pedaços. Em cada canto um pedaço, deixava restos em cada cômodo do apartamento, e seu coração de papelão no corredor.
Austero, na sala, em frente à varanda, via a escuridão ceder à primeira luz do dia.
Via o negro tornar-se vermelhidão, e ouvia os primeiros sons do dia ganharem vida.
O elevador.
O balbuciar de conversa.
Ouvia levantarem no quarto ao lado.
Barulho de porta de armário, de chaleira apitando.
De salto de sapato agredindo o piso de madeira.
Portas.
Portas.
No corredor do oitavo andar o som habitual de latidos, agudos.
Ouvia a porta do elevador abrir e os passos quádruplos da poodle de dona Clara, que voltava do passeio matinal com seu animal, que costumava mijar naquele horário.
De repente, já em transe, entre a realidade e o sono, sentia forte passarem a mão em sua cabeça e espinha.
Não via quem era.
A besta.
Ouvia longe algo como “de novo o papel”.
Barulho de chaves.
O barulho do molho o confortava.
Ouvia abrirem a porta.
Quase todos os dias as saídas dos vizinhos coincidiam.
Bom dia, vizinho.
Quase todos os dias, em átimo, a cadela gritalhona entrava já na direção da sala, devoradora de felinos em direção ao bichano.
Esfinge churrasco de gato
Quase todos os dias, o gato, já com o radar em standby, e como em escapada de ninja, pulava por sobre os sofás, saltava na mesa de jantar e logo em cima do patamar mais alto da estante.
Não mais Dostoiévski. Agora Mutarelli.
Enquanto o cão, lá de baixo berrava.
Sem legenda
Ele, do alto, via todos saírem.
Ouvia trancarem a porta, abrirem a do elevador.
A conversa ia se desfazendo, se fragmentando.
Tudo parecia mais macio, mais suave.
A rigidez do móvel se transformava em veludo.
O radar se desligava, a barriga se tornava flácida.
As patas se aconchegavam, de lado; até que em um movimento de puro descaso virava a cabeça, se entortava para a direita, tornava-se curva e se entregava ao sono profundo com a barriga para cima.
O abajur, a concha, o saco plástico e o papel higiênico eram apenas coisas.
Os insetos e a grande besta se escondiam na claridade do dia; para na madrugada serem todos novamente descobertos.
Esfinge morta