terça-feira, 31 de maio de 2011

INSTAVELMENTE

Eu chegaria à praça Roosevelt pouco antes das vinte horas, tomaria, como de costume uma taça de vinho, sozinho e vermelho seco. Iria de metrô porque assim poderia ver pessoas e sentir o movimento da metrópole preguiçosa de domingo. A noite de final de maio me proporcionaria um vento gelado que me faria fumar de mentira. As lentes dos óculos congelariam. Subiria elegantemente a Av. Ipiranga observando os homens que dormem na massa de ar quente que sai dos subterrâneos do metrô. Somos todos subterrâneos. Pagaria com o cartão de crédito e seria o primeiro da fila para escolher o lugar exato para que me sentisse sozinho. Quinta fila, cadeira do meio. Livro de um lado e cachecol do outro, assim ninguém se atreveria a se sentar ao meu lado. A companhia às vezes não nos é humana. A solidão sim.
Nesta noite a vida se tornaria uma peça de teatro. Pequeno, em um palco estreito em que contracenariam dois atores. Um chamado felicidade e outro tristeza. Ou melhor, um chamado ontem e outro hoje. Ou ainda melhor, um chamado engano, e outro chamado constatação. Os atores falariam sobre suas perspectivas. O primeiro certamente encenaria um monólogo longo, de pelos menos quatro, ou cinco horas ininteruptas, gesticuladas e com caras e bocas maquiadas. Enquanto o outro sentaria em um banco de madeira, desconfortável, e lá assistiria tedioso ao espetáculo do amigo. Quando fosse definitivamente a sua vez ficaria quieto. Em pé, olhando contra a luz, se houvesse luz, olharia vezes para mim, para ela, para o amigo, para si, para a luz, para ela, para ele, para o amigo, para si, para a luz, para o nada. Um silêncio absurdo que duraria um tempo que relógio nenhum conseguiria contar. O primeiro ator certamente ficaria ansioso para ouvir os planos e as perspectivas do outro. Sem ouvir palavra reclamaria seu dinheiro de volta.
- Não há peça. Não há texto. Quero meu dinheiro de volta!
E eu sentiria por cada segundo ambas as sensações, ouviria ambas as palavras e ambos os silêncios com a mesma vontade e emoção, ficaria tedioso em ambos os momentos. Dormiria em alguns dos ambos trechos do duelo, choraria em ambos os momentos de epifania. Aplaudiria de pé ambos os atores que se cumprimentariam ao final do espetáculo. Sentaria novamente e, após todos os pagantes saírem, a mesma luz se focaria, as mesmas cortinas se abririam, os mesmos atores entrariam em cena, os mesmos textos, as mesmas falas, o mesmo banco desconfortável à tristeza, a mesma reclamação de que não há texto, o mesmo choro no momento de epifania, o mesmo aplauso. Só.
Aplauso só.
E de novo a mesma luz, o mesmo texto, o mesmo, o mesmo, o mesmo, o mesmo, o mesmo.
Em um momento em que o relógio não mais funcionaria eu não seria mais um mero expectador, seria a luz, o texto, o banco, o fala, o choro, o palco.
Outras peças viriam e eu, em um estado de não pessoa, de não coisa, de não sentimento, em um estado verbal em plena realização seria ao mesmo tempo os atores, o cenário, o arrepio, as luzes. A vida seria uma constante realização de uma mentira plena, que substituiria o que um dia acreditei que fosse minha existência.
Seria a comédia, seria o drama, a tragédia, seria homem, mulher, coisa, fato, calor, frio, luz, escuro.
Em mim incontestavelmente haveria um ser que não viveria para os outro, mas viveria dentro de cada um. Me transformaria no teatro e não precisaria voltar pra casa, pois minha casa seria a casa de cada um, meus pensamentos seriam os pensamentos de todos, minhas sensações seriam as sensações de todos que um dia se sentaram na plateia.
Não teria obrigações, cartas, relatórios, teses, diários.
Seria o gozo.
O gozo que só o palco pode proporcionar.
E tudo reapareceria, instavelmente...
Instavelmente...