sábado, 1 de maio de 2010

"Pé de Maçã"

Pé de maçã

Fiquei parado em frente à porta.
Lia repetidamente e em maiúsculas BARBEARIA SÃO RAPHAEL.
Lembrei do dia que perguntei o porquê de não se escrever Rafael com F.
Ele dizia que era assim que tinha de ser.
SÃO FAPHAEL.
Papai não sabia escrever esse nome, ariscava. Fora idéia de Seu Mateo. Riscava o nome. Colocava o H em lugares diferentes.
Tinha uma letra deitada. Às vezes dizia o nome acentuando o “P”.
Riscava o nome.
Era canhoto.
Quando escrevia o seu, muitas vezes, esquecia de um dos Rs. Norberto virava Noberto, ou Norbeto. Senhor Norberto, Senhô Nonô, Nonozim, eu o chamava de pai Nonô.
Hoje penso no nome e percebo que carregava nele um carinho de almofada, confortante; que dava vontade de agarrar, apertar para dormir.
Assim eu fazia.
Gostava de agarrar o braço de Senhô Nonô, sentir o cheiro de tabaco e dormir. Era o cheiro da segurança.
Dormia.
Não entrei.
Mesmo depois de ter ensaiado um passo em direção às cortinas que separavam o claro da rua do breu interior, saí pela tangente.
Andei devagar pelo meio-fio tentando aspirar jundo do ar um pouco de coragem.
Na esquina fingi que procurava algum número, olhei para os lados, nas peredes, e repeti baixo
234, 238, 240.
Como se já tivesse passado do destino, voltei.
238, 234, 228, 218
Atravessei a rua
209, 203, 199 Olhei para frente, e do outro lado, em azul.
200
Papai adorava azul, lembro-me que dizia “nada como a cor do céu, pimpolho (até hoje não descobri o que significa esta palavra).
Este número me era estranho.
4.
4 era sim o número que me vinha à memória. O sr. Manuel e a sra. Lilian da casa 1. Miguel na casa 2. Betinho da motocicleta na casa 3 e a Barbearia do Nonô na casa 4.
Hoje o que seriam as casas 1 e 3 são um depósito de bebidas, com um letreiro exagerado.
CASA DA FESTA.
Uma festa solitária e mórbida era feita dentro de mim.
A casa número 2 tornou-se uma floricultura. E isso me aliviou um pouco. Melhor do que sapatos, ou tijolos para construção.
CASA DA FESTA.
Entrei e perguntei quanto custava uma lata de coca-cola.
Não vendemos separado. Tem que comprar em caixa.
Com dez reais e setenta o oito centavos saí da loja carregando doze latas de coca-cola.
Quentes.
Deveria ter imaginado que uma loja dessas nunca venderia refrigerante gelado. Sentei-me à porta do estabelecimento, colocando as latas entre as pernas.
Lia insistentemente.
BARBEARIA.
BARBEARIA...
BARBEARIA.
Passava as mãos no rosto. Fios com centímetros cobriam as bochechas, o queixo e parte do pescoço.
Fazia calor.
Tinha barbas como as de meu pai; com redemoinhos que pareciam girar.
E giravam dois. Dois giravam.
Olhando para a velha casa abri uma lata de refrigerante, que por ter sido, provavelmente, agitada há pouco, cuspiu líquido caramelizado em minhas calças jeans. Como eram claras pareciam sangrar, sarampear.
Bebi um gole generoso, que me desceu dilatando a garganta. Quente e gasoso. Respirei com mais facilidade e os olhos pareceram encher d'água, sem emoção.
Na esquina dois moleques jogavam bola, e como aparentemente a rua ainda era bastante tranquila, embora tenha visto linhas de ônibus que não conhecia, jogavam gol-a-gol, de garagem-a-garagem. Davam bicas, riam, gritavam
GOOOLLL
com todo o ar dos pulmões. Senti vontade de também de dar uma bica, gritar Gooll, e por fumar não seria um grito tão longo e vivo.
Após um belíssimo gol do que estava de chinelos encaixados nas mãos, fiz sinal para que viessem até mim.
Mesmo parecendo meninos pobres, foram educados para não falar com estranhos.
Ei, vem cá!
Olhavam com receio.
Um deles logo pegou a bola e, limpando-a, como se fosse um troféu, trocou idéias com o amigo, de sobrancelhas franzidas. Desconfiança.
Ei, vem cá!
Chamei com movimentos mais convincentes, duas vezes.
Vem, cá!
Vieram, mas à distância de dois ou três metros pararam.
Que é, tio!
Vem cá!
Pode chegar perto, não sou nenhum psicopata não.
Fizeram cara de que não entenderam o adjetivo, mas mesmo assim vieram até mim.
Tá a fim de coca?
Perguntei para o rapaz dos chinelos nas mãos, para ele porque me identifiquei com a posição dos chinelos, era exatamente como eu fazia.
E quando chegava em casa papai logo remendava: “Oh, pimpolho, lugar de chinelo é nos pés, como vai segurar o garfo assim” e dava longas gargalhadas, eu também achava graça e logo depositava os chinelos nos pés, às vezes com os pés trocados.
Como que você segura o garfo assim?
Oh, moço, eu tiro, né, coloco nos pés.
Garoto esperto. Tá afim?
Apontei para as latas de coca que estavam no chão.
pá, manda pra gente, disse o outro garoto. Mas está sem gelo.
Vixi, deixa com a gente.
Um olhou para o outro e trocaram olhares, abreviados. Acredito que grande parte da comunicação entre eles era feita por telepatia. Se conheciam bem. Senti saudade de Marquito, fora meu vizinho ali, grande amigo baixinho, fera no futebol. Nos conhecíamos do avesso. Bastava um olhar para que um soubesse o que o outro queria.
Lembrei-me de um dia em que eu e Marquito estávamos passando em frente à casa de seu Manuel, na casa 1, somente nos olhamos, sem dizer palavra. Pegamos um pedacinho de madeira do chão, parte de um palito de fósforo, apertamos com força a campainha do velho e encaixamos no interruptor o palito, fazendo com que a campainha não parasse de gritar.
Corremos, felizes, tropeçando nas pernas finas.
Vixi, o outro respondeu.
Correram.
Fiquei sem entender.
Cinco minutos depois reapareceram com três copos descartáveis cheios de gelo. Assim que chegaram entendi o “Vixi” e a corrida, me vi em um deles, e no outro Marquito. Bebi coca-cola com meu Marquito.
Moço, você comprou coca sem gelo?
Perguntou o de chinelos nas mãos.
Me senti um idiota e respondi que sim, porque gostava de coca sem gelo mesmo, estava com problemas na garganta.
Pra que time o senhor torce?
Brasil!
Ah, tio, fala sério, Brasil.
Não torce pra time nenhum?
O senhor não gosta de futebol?
Decepção
Eu não podia dizer para Marquito que não gostava mais de futebol, preferia agora jogar cartas, apostar em alguns jogos. Era menos cansativo e mais emocionante.
Gosto sim.
Adoro futebol.
Então, pra que time o senhor torce?
Digam primeiro vocês.
Rapidamente o garoto que não seguraria o garfo gritou
COORIINTHIIAANS
É o timão, tio.
O outro logo interrompeu.
Que timão nada, tio, o esquema é o verdão, gritou
PAALMEEIIRAAS.
Eu poderia escolher um dos dois times, já que não torcia mais para clube nenhum, ou melhor, o time que eu torcia já não tinha expressividade alguma. Após pensar durante quase um minuto, sendo pressionado pelos meninos, não me trai e gritei
POORTUUGUUEESAA.
O que?
Em coro.
Portuguesa, não conhecem?
Poxa, tio, Portuguesa, fala sério.
Estou falando sério.
Demos risadas.
Acabamos com as cocas em poucos minutos. Os meninos estavam secos.
Vocês jogam muito bem, eu estava vendo daqui.
Valeu.
Ouvimos um grito estridente de gaivota. Não consegui decifrar as sílabas.
Meu, minha mãe está me chamando.
Imaginei uma senhora muito gorda nos olhando há muito tempo, desde o momento em que me sentei na companhia dos refrigerantes. Viu um homem estranho olhando para seu filho e o colega, de repente viu o homem estranho chamar os moleques, viu-os correrem, voltarem, conversarem com o homem estranho. Por medida de segurança resolveu chamar a cria.
Vai lá, garoto.
Falou, tio.
Sobrou Marquito.
E então, Marquito?
O que?
Respondeu sem entender.
Refiz.
E então, rapaz?
Qual o seu nome?
Respondeu baixo, não entendi direito, ouvi bem o final SON.
Legal. Você mora aqui perto?
Faz tempo que mora aqui?
Quem são seus pais?
Na tentativa de conhecê-lo, descobri que não falava com Marquito, mas com o filho dele. Emocionei-me e fiquei quieto por um instante.
O que foi, tio?
Nada.
Anos se passaram rasgando minha mente, as travessuras com Marquito, as brigas que comprávamos, as meninas que namorávamos – Marquito sabia convencer as mulheres.
Tentei desconversar.
Quantas embaixadas você faz?
De pronto respondi que fazia mais do que ele.
Então quero ver! Desafiou-me com raiva contida.
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35.
Tá bom, tá bom. Interrompi as magníficas embaixadas. E o filho de Marquito não ficava somente nos pés, era
cabeça
ombros

coxa


Marquito sempre jogou mais bola do que eu. Era sempre o primeiro a ser escolhido. Eu ia para o gol, ou jogava na linha quando exigia e dizia que era o dono da bola.
Pô, tio; você me atrapalhou.
Desculpe.
Quantas eu fiz?
30.
De propósito subtrai cinco embaixadas, assim eu também fazia com Marquito, atrapalhava sua contagem e sempre subtraia algumas, mas mesmo assim eu nunca ganhei; e não seria dessa vez.
Pô, tio, trinta, mas eu contei 37.
Realmente era filho de Marquito.
Agora é a sua vez, tio.
Ih, o tio está velho – contava nesta data com 37 anos e muitos maços de cigarros. Vamos lá!
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, - e cada embaixada me rejuvelecia um ano – 15, 16, 17, 18, 19, 20,
a
bola
escapou
e foi para o meio da rua. O menino ia correr atrás; segurei em seu braço e o impedi. A lotação acabou com a nossa diversão, fez da bola borracha flácida.
Porra, tio! Você jogou a bola na rua.
Calma, Marquito.
Calma, quem?
Ninguém, tá bom, olha, fica calmo.
Porra, a bola nem era minha, tio.
Tá bom, escuta, quanto custava essa bola?
Sei lá, tio.
Abri a carteira e comprei de volta a felicidade do menino. Mesmo sabendo que aquela bola não custaria mais de quinze reais, dei a ele uma nota de cinquenta.
Caraca, tio, você é doido. A bola não é tudo isso não.
Tudo bem, compre uma bola como aquela e guarde o resto para você. E você não precisa nem falar para o seu amigo o que aconteceu com a bola.
O menino pensou.
Ah, tio, quer saber, vou comprar uma bola melhor pra ele, e com o resto da grana vamos comprar um golzinho.
Definitivamente era como Marquito, tentava se adiantar na contagem das embaixadas mas nunca foi egoísta.
Engoli seco e baixei a cabeça.
Um carro vermelho passou do nosso lado e buzinou, duas vezes curtas. O menino logo reconheceu o chamado e estendeu as mãos que seguravam a bola murcha.
Quem é?
Perguntei automaticamente.
Meu pai.
Vi o homem embicar o carro e dele sair apressado para abrir o portão. Era magro. De calça social e camisa um pouco amassada.
VERDE.
Usava relógio e tinha uma clareira em formação na cabeça. Reconheci pela maneira de andar. Brincávamos que ele era como o relógio, andava em dez para as duas, mas mesmo assim tinha uma canhota de arrepiar, geralmente acertava o ângulo, isso quando não mandava com afeito, aí era goleiro para um lado e bola para o outro – e eu era o goleiro.
Ei, tio, vem conhecer meu pai!
O menino queria que eu me ligasse novamente ao meu passado. Senti medo e rapidamente arrumei uma desculpa.
Não! Não! Estou com pressa.
Mas você estava aqui fazendo embaixada.
É, mas estou com pressa.
Assim como alguém encontra um testemunha de Jeová, fui na direção contrária a do menino, que correu para o pai.
234, 238, 240.
Parei e olhei para trás. O menino me olhava e falava algo para o pai, que fez sinal para que eu voltasse. Tremi completamente e ao ver que estava em um ponto de ônibus fiz sinal para o que passava naquele exato momento.
De dentro do coletivo vi o menino e o pai olhando para dentro de mim. Acredito que Marquito sabia quem estava olhando. Voltei para casa.
Três dias depois, um pouco mais tarde, quando tudo começa a perder o tom, fui novamente para a Rua Sete Lagoas.
Desci um pouco antes da CASA DA FESTA, onde tinha embarcado da última vez. Como tudo estava perdendo a cor, e acredito que eu também, tive coragem de entrar na barbearia.
O senhor já está fechando?
Daqui a pouco. O que o senhor deseja?
Choquei-me com a voz de meu pai. Estava mais rouca, pareceu-me que saía dolorida, sem vida. Não me olhou, e sempre foi assim, não olhava para seus fregueses.
Sempre me dizia que tinha de olhar nos olhos dos outros somente após terem feito cabelo e barba. Acreditava que os homens que iam à barbearia iam para se tornar bonitos, e quando feios não gostavam de ser observados.
Queria que papai me olhasse, visse nos fundos dos meus olhos quem eu era, ou melhor, lembrar de quem fui. Ler em meus olhos a sua sentença.
Quero fazer a barba.
Disse tentando modificar a voz.
O senhor está bem?
Perguntou-me, percebendo a mudança.
Estou. Podemos?
Sente-se.
Tenho de acender a luz, nesse horário já não enxergo tão bem.
Fique à vontade, respondi com medo de ser reconhecido.
Foi devagar ao quadro de luz, que era ainda o mesmo, e com cuidado levantou a alavanca, que deu um estalo ao se ligar ao pregador. Não tinha sequer trocado a fiação da casa, que já era velha e perigosa.
Não tem medo de não colocar dijuntores? Qualquer coisa eles desligam.
Meu filho, - nesse momento me vi menino, mas depois percebi ser educação – você sabe a quanto tempo estou aqui?
Deu-me vontade de dizer.
Não, respondi.
Quantos anos você tem, menino? – tornei-me mais menino – Não deu tempo de responder.
Ah, deve ter uns trinta, trinta e poucos.
Sim, respondi.
Então, se em quarenta anos não deu problema, vai dar agora?
Decidi não continuar a discussão respondendo obedientemente
SIM.
Seus gestos eram rápidos como nos dias em que o via encaixar uma nova lâmina à navalha.
Abria.
Quebrava.
Segurava nos lábios.
Abria.
Encaixava.
Fechava.
Pronto.
Naquele dia demorou alguns segundos a mais. Eram os anos. Tremia, mas mesmo trêmulo mostrou destreza. O que sempre me impressionava, e naquele momento não deixou de acontecer, era o fato de mesmo com metade da lâmina entre os lábios, conseguia balbuciar algumas palavras.
Quando pequeno nunca consegui entender, mas nesse dia ouvi, torto, chiado: “Eu gosto dos menino desses tal de ie ie ie”. Parou por aí.
O senhor quer serviço completo?
Pensei em discutir sobre esse “serviço completo”. Dizer que sua vida e minha vida não fora um “serviço completo” por culpa dele.
Senti raiva de meu pai.
Respirei, olhei sua imagem refletida no espelho: pele vermelha, cabelos brancos, ralos, baixo, eu pude fluir pelos sulcos de sua pele. Pude me ver ali, vi os traços de meu nariz, vi os cantos dos olhos, vi as sobrancelhas, as minhas eram um pouco mais densas.
Sim, senhor, quero seviço completo.
Começou pela barba. Estranhei, pois sempre o vi começar pelos cabelos.
Esquisito o senhor não começar pelos cabelos?
Já veio aqui fazer barba e cabelo, rapaz? Eu não me lembro de você, bem, a memória é curta, se não me lembro o senhor desculpa!
Não, nunca vim aqui não, é que geralmente se começa pelos cabelos, é que tenho um parente barbeiro.
Mas ele é barbeiro ou cabeleireiro? Porque eu vou contar uma coisa pro senhor, esses meninos de hoje, que cortam cabelo, e que não gostam que se chamem barbeiro, não têm mão não, um bando de homem que gosta mais é de cortar cabelo de mulher. Eu não – levantava a sobrancelha, assim eu também fazia quando queria dar a minha opinião sem saber o que o outro pensava sobre o assunto – Eu não quero falar asneiras, mas são um bando de viado, o senhor desculpa falar assim, mas um bando de mulherzinha. O senhor não acha?
Não respondi de pronto. O conhecia e sabia que independente daquilo que eu falasse ele iria morrer pensando daquela maneira. Mas como desde menino gostava de contrariá-lo disse: “o senhor não acha que se fossem mulherzinhas iriam preferir cortar cabelo de homem?”.
Refletiu alguns minutos sobre o que falei.
Fez-se S I L Ê N C I O.
Após algum tempo pude ouvir o sussurro, que fingi não escutar: “é porque eles querem ser como elas”.
Fazia a linha retíssima, como se a fizesse com o auxílio de uma régua. A distância entre a curva do maxilar e as pontas das orelhas, em ambos os lados, eram exatamente iguais. Tinha a velha técnica de medida, com a própria navalha; mesmo que agora tremesse com intensidade.
No momento em que acertou a linha superior, que passa pelas bochechas, às vezes por baixo delas, às vezes por cima, dependendo do estilo que se quer empregar, o velho barbeiro parou com os dedos nas maçãs de meu rosto.
Parou e passou seus dedos várias vezes no osso protuberante que tenho no local. Acreditei ser os segundos cruciais de reconhecimento.
Minhas maçãs eram idênticas às dele, vinham do mesmo pé. Rapidamente fiz com que retirasse sua atenção das maçãs e a levei para o que parecia com uma batata, daquelas com as quais se faz à vinagrete, meu queixo.
Cuidado ao acertar aqui, deve ficar um pouco maior, pois tenho uma cicatriz.
Sem dúvida fiz o pior, se não me reconheceu quando examinou as maçãs, reconheceria pela cicatriz deixada pelo tombo que levei quando menino, naquela rua, naquela calçada, quando disputava uma bola com Marquito.
Não lembrou da cicatriz.
Nos cabelos fez um serviço rápido. Não perdera a habilidade.
Por segundos eu fechava os olhos e somente, e com atenção, ouvia o tilintar da tesoura. Isso me levava ao passado, e ao mesmo tempo para o futuro.
O que foi de mim?
O que foi dele?
O que será dele?
O que será de mim?
Me vi pequeno, sentado e observando meu pai fazer as barbas e os cabelos de outros velhos. Cada vez mais velhos. Lembrei-me de seus dedos cortados, cada semana com um curativo diferente. Curava um atinava outro. Por mais que fosse habilidoso, muitas vezes o afiado do metal passava pela carne.
Papa, cortou de novo?
E um tilintar mais forte me acordava.
Cabelo pronto, barba feita, perguntei o preço e fui informado que, por ter sido a primeira vez, teria um desconto.
Não fiz questão dele.
Paguei integralmente.
O velho verificou contra a luz a legitimidade da nota e me deu o troco. Faltaram dez reais. Fiz que não percebi e coloquei o dinheiro devolta na carteira.
Rapidamente refleti sobre a falta do dinheiro. Havia agido de má fé?
Despedi-me com um aperto de mão. O dele ainda era forte, mas senti o tremor. Dei uma última olhada no ambiente, reconhecendo alguns objetos. Um aparador, uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida, estatueta quebrada por mim e com a base colada, um suporte para colocar canetas, feito com copo de extrato de tomate.
Eu estava naquele lugar. Quis sair rapidamente. Despedi-me novamente daquele senhor, que me olhou fixamente; não tive coragem de fazer o mesmo.
Aquele salão parece ter se alongado, a saída ficou distante, parecia querer me segurar.
Quando coloquei o pé direito no primeiro degrau de descida, dois garotos entraram correndo na barbearia.
Reconheci os meninos.
Eram os garotos que no outro dia jogavam bola na rua.
Ei, calma, garoto.
Consegui segurar um deles, pelo ombro.
Está apressado , rapaz?
Oi, tio, é você. Lembra de mim?
Lembro sim, tio.
O senhor arrumou até umas cocas pra gente, além de me pagar uma bola nova. O senhor sabia que compramos um golzinho?
Que maravilha, garoto. Não estão jogando bola hoje?
Ih, tio, ontem, assim que chegamos com a bola nova, no primeiro chute, a bola pipocou na lança do portão da floricultura. Que merda, né, tio. A gente está azarado, mas é a vida, tio.
Pensei que mesmo rápida valeu a pena ter proporcionado a felicidade aos garotos.
O Cleverson (aí descobri o nome do filho de Marquito) até pediu uma bola nova pro pai dele, mas o tio não tinha dinheiro.
Naquele momento pensei seriamente em retirar outra nota alta da carteira e presentear novamente os garotos. Era como se eu mesmo me desse uma outra bola, e certamente eu iria me dar uma daquelas caras, de capotão. Mas como o velho analisava o meu discurso, de longe, resolvi não fazer esse agrado.
Que pena, rapaz! Quem sabe no dia que eu voltar aqui eu não possa trazer uma bola nova pra vocês, quem sabe assim traga mais sorte.
O outro garoto já estava dentro do salão, tomando um enorme copo de água.
E quando você vai voltar, tio?
Olhei para o velho.
Não sei, menino. Não sei não. Talvez amanhã, ou depois. Está cansado é? O que estavam aprontando?
Ah, tio, a gente estava correndo atrás de pipa, quase pegamos um, dos grandes, até pegamos, mas aí veio um homem e tomou da gente.
Eu poderia ficar alí ouvindo toda a epopéia dos garotos, mas me invadiu uma vontade imensa de sair dali.
Vai lá, garoto, vai tomar uma água, como seu amigo.
Vou sim, tio. Vim pedir uma bola nova pro meu pai.
Pai?
Tentei retomar a memória recente e lembrar se havia mais alguém dentro da barbearia, além de mim e do velho.
Não havia.
O garoto se despediu de mim com um forte aperto de mão, e dentro pediu para o velho uma bola nova.
Filho é problema, não é, moço?
E olhou para mim.
Não sei, não tenho filhos.
Saí.
Andei pela calçada com a imagem daquele menino me atormentando. Jogava futebol no meu cérebro e fazia golaços na minha testa. Embarquei no coletivo alguns kilômetros à frente.
Durante uma semana aquele garoto ficou jogando pelada contra meus neurônios.
Seu pai, meu pai.
Não pude deixar de me colocar no lugar daquele menino.
Nove, dez anos? Short, camiseta e chinelos nas mãos, assim eu também era. Durante o expediente, em meu escritório, entre um telefonema e outro o garoto fazia um gol, momento feliz, mas às vezes fazia uma falta, momento triste.
Na terça-feira da semana seguinte fui até um shopping da avenida Paulista, rapidamente andei pelos corredores, era hora de almoço, logo vi na vitrine de uma grande loja de brinquedos. Grande, Preto. Branco. Pentágonos. Redonda. Couro. Comprei duas, uma para mim e uma para ele. Nesse mesmo dia fiz algumas embaixadas ainda em meu escritório.
Entre a vigésima quarta e a vigésima quinta derrubei o mouse de meu computador. Me senti feliz por ser, por alguns minutos, aquele menino.
No final do dia de trabalho pensei em procurar o garoto. Joguei as bolas no porta-mala do carro e segui para o bairro da Penha. Passei pela velha rua, uma, duas, três vezes.
A barbearia estava em meia porta, e só pude perceber sombras de pernas que dançavam dentro. Parei o carro do outro lado da rua, frente ao ponto de ônibus. Pensei em descer. Desliguei o carro. Liguei. Desliguei novamente.
Queria chamar o garoto para uma pelada, mesmo à noite, mesmo cansado; jogaríamos gol-a-gol. Certamente deixaria ele ganhar, pois assim eu ganharia também. Quando vi o velho sair fechei os vidros, que eram protegidos por filme; fiquei invisível. O velho saiu, outro velho saiu, o menino saiu, uma senhora saiu. Liguei o carro e também saí.
Na quarta-feira, ao meio dia eu já estava a postos na porta da barbearia, como soldado.
Oh, menino, tudo bem? Algum problema com o cabelo, ou com a barba?
Disse-me o velho analisando milimetricamente o trabalho feito na semana anterior.
Não senhor, tenho que fazer novamente a barba, pois tenho uma reunião importante no final da tarde; o senhor poderia fazer, rapidinho.
Convidou-me para entrar.
Assim que acostumei com o escuro do ambiente percebi algo que da primeira vez não me apareceu.
Entre duas pequenas samambaias repousava, na parede, um retrato; nele posavam cinco pessoas. O veho. Uma menina que aparentava ter por volta de vinte anos. Uma outra menina, com uns dez anos. O garoto da bola de capotão e uma senhora, gorda e com os cabelos muito longos. Deduzi ser a família do barbeiro.
Durante a nova obra do homem em meu rosto, quando ele estava retíssima fazendo a linha do maxilar, vi voar o que me pareceu com uma bola sobre a minha cabeça.
Assim como eu, o velho se assustou, fazendo com que a mão da navalha forçasse a lâmina em meu pescoço. O corte não foi profundo, mas logo se fez um fio de sangue em direção ao colarinho da camisa, deixando nela um vermelho intenso.
O velho passou logo o dedo no corte e largou a navalha.
Moleque desgraçado, olha o que você fez. Me dá essa merda dessa bola aqui.
O velho, nervoso, pegou o garoto pelo braço, com força deu dois tapas em sua bunda e o fez pegar a bola, que entrara, com a velocidade, no banheiro. O menino, em prantos, deu a bola ao pai.
Moleque, olha o que você me fez fazer. Olha o pescoço do homem.
O peladeiro me pediu desculpas aos soluços.
Não foi nada, calma, rapaz.
O velho estava explodindo, e quando levantou a mão direita para dar na cara do garoto eu a segurei.
Não faça isso. Não bata em seu filho. Nunca bata em seu filho.
O velho olhou-me, viu em minha retina um cartão vermelho. Esse olhar pareceu-me durar horas, e nele talvez o velho possa ter me visto menino.
Termine o serviço, por favor. Vá lá pra fora, menino.
S I L Ê N C I O se fez.
Acabei, disse-me o barbeiro como quem finaliza uma obra prima. Olhei cada linha próximo do espelho, passei as mãos e senti o liso e macio da pele sem pelos.
Trabalho perfeito.
Paguei o homem e sem mesmo agradecê-lo saí. Assim que desci os degraus vi, do outro lado da rua, onde da primeira vez me sentei com as latas de coca quente, o garoto de cabeça baixa.
O correto talvez fosse deixar tudo aquilo para trás, entrar no carro e ir embora, esquecer a barbearia São Raphael, esquecer o menino e, principalmente, esquecer o barbeiro.
O que você tem, menino? Não fique assim. Acidentes acontecem. Aquilo foi um acidente, não foi? Aposto que você não queria fazer aquilo. Ainda mais um craque como você.
O garoto olhava para mim como quem olha para um amigo, esperando infinitas palavras de conforto. Cheguei a compará-lo com Pelé, antes de procurar nomes mais atuais, e não encontrar.
Seu pai ficou com a bola?
Respondeu-me com um balançar de cabeça.
Mas que bola era aquela?
Ah, tio, era uma bola de meia-calça, já que a outra que o senhor deu furou na lança. Dava até pra jogar, era bola de bobo, a gente chutava e ela ia pra vários lados, porque era torta.
E esboçava um sorriso.
Assim dá pra ficar mais craque ainda, né?
Tem que ficar esperto pra jogar com essa bola. E eu sou esperto, tio. Chutava e sabia pra onde ia, mas quando a bola foi pra loja é que eu peguei de mal jeito, quis dar um chute de trivela, mas pegou de bico, aí, o senhor já sabe.
É sei sim. Mas, como eu disse, isso acontece, rapaz. Lembra do Roberto Bajo? Um craque como você, na copa de 94, perdeu um penalti decisivo.
O garoto certamente não lembrou.
Olhou-me estranho.
Mas deixa pra lá, você é um craque, e não pare de jogar bola, heim.
Depois de alguns segundos sem saber o que dizer, fiz-me de desentendido e fingi me lembrar de um falso presente para um falso sobrinho, as bolas que estavam no porta-malas do carro.
Rapaz, sabe do que eu lembrei agora?
Olhou-me.
Tenho uma coisa no carro que você vai gostar muito.
Olhou-me diferente.
Fui.
Voltei.
Distante alguns metros joguei a bola para o menino. Como em câmera lenta ele acompanhou a trajetória do objeto. Suas feições, a medida que a bola se aproximava, ia passando de noite a dia, de chuva a sol.
Caraca, tio.
Já dançando com a bola.
Essa bola é muito legal.
Ensaiava embaixadas. Jogava-me, e eu retribuia.
É para você, rapaz.
Mas não era pra outro menino?
Era, mas eu já tenho outra para o outro menino.
Que legal, tio. Obrigado.
Não vou mentir e dizer que aquele momento apagou toda e qualquer mágoa que eu poderia ter do barbeiro, a raiva que senti ao ver os meus objetos na barbearia e principalmente o retrato de família.
Pensei até mesmo em machucar o garoto, posteriormente, deixar marcas nele, para que o velho visse; e quem sabe matar o boleiro.
Depois invadiu-me o peito a vontade de falar para aquele menino que o velho da barbearia, caso não soubesse, tivera uma outra familia. Com filho e mulher, uma santa mulher; que todos os dias apanhava da mão pesada, até que um dia fora encontrada por mim com a garganta cortada. Contar a ele que eu tinha a sua idade quando isso aconteceu, que eu adorava jogar gol-a-gol com Marquito e que adorava observar meu pai fazer, rente, uma barba, ouvir o barulho do metal.
Dizer que durante alguns anos, após o choque emocional por ver minha mãe morta, não conseguia dizer palavra. Fora durante anos estátua. Que dos treze aos vinte fora morador de orfanato. Sem parentes. Que fora violado. Que fora invadido. E que por outras circunstâncias da vida, após saber que o pai não estava mais preso, fora parar certo dia novamente na porta daquela barbearia.
Falaria tudo. Faria tudo. Mas aquele menino era a minha segunda chance, o meu segundo tempo.
O menino ficara tão embebido de alegria com sua redonda que eu não mais quis fazer parte da festa e, assim como um jogador que recebe um cartão vermelho, saí de campo.
O garoto chutava e ria, ria e chutava.
cabeça
peito

pé pé.
Ia fazendo seu show. E a galera gritava. Eu, suavemente, dei as costas, entrei no carro e saí, devagar.
Ví, pelo retrovisor, o garoto ainda sorrindo e a bola em movimento, fazia parte dele. O garoto foi ficando cada vez menor, até desaparecer.
Desde aquele dia, há dez anos, não faço rente a barba, para não deixar as maçãs a mostra; para não lembrar de mim.
O menino,
não sei.
O barbeiro,
não sei.
Mas a minha bola de capotão pousa em um canto do quarto.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Novo conto - Possivelmente estará no próximo livro... Comentem

Madrugada

O gato preto ia do quarto para a cozinha.
No único corredor do apartamento andava rente à parede.
Sentido banheiro.
Sentia a umidade.
Por debaixo da porta via um feixe de luz que se movia e invadia parte do estreito corredor, vinha acompanhado de vapor d´água.
Seguia a sombra e as nuvens.
M O V I M E N T O . . . M O V I M E N T O
Sentia o cheiro quente.
Gostava de ouvir o barulho que vinha do outro lado, que por ser contínuo deixava-o em transe.
Ssssom de cachoeira.
Fechava os olhos e respirava, parecia dormir em forma de estátua egípcia; somente o rabo se movimentava, leve e constante; direita, esquerda.
Esfinge em movimento.
Quando o barulho de água se extinguia sentia de volta a sua realidade.
Os sons, mesmo habituais, o fazia às vezes olhar para os lados, pesquisar longe o que caia, o que buzinava, o que gritava.
Tentava fazer o corredor mais longo, assim ia no sentido da cozinha em zig-zag. Passos curtos, de maneira que o percurso tivesse maior duração.
relógio
Às vezes parava e olhava para cima. Gostava de ver o teto.
Algo sempre o chamou a atenção alí.
Parava e olhava.
Parava e olhava.
Parava, sentava e olhava, com a ponta do rabo balançando.
Olhava fixo.
Esfinge em movimento.
Sentia a sua liberdade nas madrugadas.
Meia lua de relógio.
Casa escura, ecos, cheia de segredos, ecos, sons, sombras, ecos.
O abajur que era fera, de manhã, era abajur, a concha de feijão que era mistério e movimento, de manhã, era concha de feijão e o saco plástico que era susto e deformidade, de manhã, era saco plástico.
Na outra madrugada tudo novamente selva.
SEGREDO
Gostava de libertar seus instintos mais primitivos quando, em qualquer esquina, se encontrava com a outra, que o esperava já no mesmo lugar de todas as noites.
Ele a olhava, com as pupilas dilatadas, ela, da mesma maneira, apreciava a sua presa; alguns instantes, longos.
Saboreavam o desejo da perseguição, um aguardava o outro, pois sabiam que o segundo golpe é de fato certeiro e, como em contrato, cada noite um rasgava os tacos no sentido do outro, que se fazia maior, e sem misericórdia mordia o pescoço de seu inimigo.
Alvinegro Kama Sutra Yin-Yang
Corriam rente às paredes de todo o apartamento, subindo nas mesas, camas, armários.
Conheciam cada centímetro de seu lugar, porém, quando algo chamava a atenção paravam a luta mortal:
bolsa
mosquito
luz de lanterna que refletia
Logo ele deixava a luta, não como ferido, nem como vitorioso, mas como burocrata em término de contrato, deixando nela instintos não saciados.
Mesmo alto o oitavo andar não o amedrontava.
Por volta das duas, brisa da direita para a esquerda, saía com ar de austeridade.
Não ia até a beira da varanda, não olhava para baixo, fixamente para frente, [Esfinge] às vezes seguia como selvagem algum mosquito, tentando acertá-lo [Simba].
Ali deitava e esticava as pernas, deixando com que uma das patas dianteiras tocasse no nylon da tela de proteção.
Respirava fundo e fechava e abria os olhos constantemente.
Gostava de ver os poucos focos de luz dos apartamentos no edifício à frente. Certamente haveria neles algum dos seus, também seriam donos de seus lugares.
Aristocratas
Via pontos acenderem, apagarem, acenderem, apagarem.
Da direita, da esquerda.
Formavam desenho.
C o r e s.
Um homem que gritava na rua. Era o lixeiro, com o seu caminhão de apito.
Este som o deixava afoito, fazia com que se levantasse e andasse em círculos.
Andava na mesma frequência do apito.
Todas as noites.
Fazia sons guturais como se conversasse com os homens na madrugada, com os assovios, as buzinas, os choros de criança, os pipocos das motos.
Suas pupilas conversavam com as luzes, com os faróis, com as cores das telas de tv do outro lado. Paredes coloridas.
Na varanda havia um sensor, que quando provocado fazia acender uma luz lateral.
Nas noites de calor, por volta das três horas ele passava exatamente na linha que promovia o fenômeno.
Sabia que aquela luz atraia alguns insetos, e adorava quando um desses fosse uma mariposa, grande, rápida.
Assim que ela aparecia ele instintivamente pulava em sua direção. Pulava por sobre uma cadeira que ficava debaixo da lâmpada e de lá tentava acertar um jab de direita no bicho.
Não o matava.
Fazia com que o adversário voasse para dentro do apartamento.
Esfinge caçadora
Provocava e o deixava voar para a escuridão dos móveis; assim podia, com segurança, diversão e animalidade, caçá-lo.
Algumas noites cumpria o ritual em poucos minutos, e quando isso acontecia ele, mordendo levemente as asas do bicho, levava-o novamente à varanda, soltava-o em direção a sala, e tudo recomeçava.
Esfinge caçadora em replay
Quando não tinha a sorte de encontrar uma mariposa, se divertia com alguns pernilongos.
Zummm infernal. Se irritava.
Certa noite, antes mesmo de chegar a hora de acender a luz da varanda, viu algo realmente novo, um pequeno ponto iluminado, que no início se confundia com uma das janelas dos apartamentos à frente.
Ia em sua direção sem respeitar uma trajetória lógica.
Acendia. Apagava. Acendia. Apagava. Longo. Curto. Apagava. Acendia.
Como nunca tinha visto algo parecido, o bichano se amedrontou. Se colocou quadrúpede, em alerta.
Em uma última tentativa de reconhecer o novo objeto, deixou com que o vaga-lume deitasse em seu nariz.
Por três segundos se olharam.
O inseto ganhou a luta, fez com que o seu adversário saísse em disparada em direção a uma das prateleiras da estante da sala, lá se encolhendo até que o estranho elemento desaparecesse.
Esfinge atrás de Dostoiévski
Sua briga com os seres noturnos nunca ultrapassavam às quatro da manhã.
Às quatro alguém sempre se levantava para ir ao banheiro.
No horário marcado estava a postos, na porta do cômodo.
Levantavam, acendiam as luzes do corredor.
Ele estava lá.
Esfinge seca
Olhares cúmplices.
Entravam juntos e o bichano pulava em direção ao lavatório, onde encontrava seu paraíso, a torneira aberta em um fio de água que refrescava sua língua durante minutos.
Esfinge úmida
Assim que ambos acabavam, novamente trocavam olhares cúmplices. O bichano recebia forte carinho nas costas e descia.
Via os passos cessarem, as luzes diminuírem e tudo voltava a ser selva, escura e enigmática.
SEGREDO conhecido
Acreditando que a noite não reservaria mais nada de incomum, escutava o urro feroz de uma besta.
Levantava-se e ia devagar em direção ao som.
Suas orelhas apontavam a direção.
Ia rente às paredes, assim poderia se esquivar de um golpe.
No meio do caminho, quase à entrada da cozinha hesitava.
Percebia que o som ganhava intensidade, e acreditando que o monstro poderia estar indo ao seu encontro corria para seu esconderijo na estante.
Esfinge atrás de Dostoiévski
Sentia o mostro engasgar.
Talvez tivesse engolido sua companheira de luta.
S I L Ê N C I O
Tomando-se de coragem resolvia enfrentar. Morderia diretamente o pescoço da fera, do lado direito.
Passos l e n t o s.
Orelhas como radar.
Olhava para o teto.
Seguia em direção ao quarto.
O urro
Um som sem fome, tranquilo e constante.
De debaixo da cama podia ouvir cada vez mais próxima a respiração arranhada.
Subia na cama com coragem.
Via a fera e seu estômago, cheio, movimentando-se em digestão macabra.
Subia delicadamente na barriga da besta, chegava próximo ao seu pescoço, ensaiava a mordida, mas em movimento rápido a besta acertava, sem piedade, a cara do bichano, derrubando-o da cama.
Caia como todos de sua expécie, com as quatro patas, em equiíbrio.
Antes que o mostro pudesse esboçar qualquer outro movimento violento, resolveu sair, com o rabo trêmulo.
Esfinge assustada
À partir das cinco iniciava uma ronda de re-reconhecimento.
SEGREDO mais que conhecido
Os corredores e cômodos do apartamento formavam algo parecido com uma flor, constituida de cinco pétalas.
Um quarto grande, um escritório pequeno, um banheiro, a sala e uma grande cozinha.
Fazia
o percurso da
flor,
andava devagar cada pétala, cheirava cada canto, cada móvel, não subia neles, procurava algo pelo chão, pelas fendas e por debaixo dos móveis com a pata, quando não alcançava os lugares mais ermos com o focinho.
Fazia todo o caminho algumas dezenas de vezes.
Ia cada vez mais devagar.
Procurava algo ainda desconhecido.
SEGREDO sem segredos
Muitas vezes encontrava no banheiro, lugar úmido que adorava.
Achava algo que quando batia se desmanchava, e que quando caía no chão tentava fugir, deixando rastro.
O rolo de papel higiênico. Gostava de levá-lo ao corredor, com cuidado, e lá travar uma luta mortal com o que seria um interminável tentáculo, ou uma cobra venenosa.
Mordia o réptil, e com um ar de superioridade o deixava viver, por alguns momentos saía e deixava o animal agonizando, ferido.
No final do corredor se voltava novamente ao inimigo, baixava as pernas dianteiras e levantava as traseiras; olhava fixamente para a presa, já quase morta, tomava impulso e, como um ráio, pulava na presa.
Às vezes escorregava e batia com a cabeça em uma das paredes.
Ali, e naquele horário, utilizava-se de suas últimas forças instintivas para liquidar com aquele ser enigmático.
Fazia-o em pedaços. Em cada canto um pedaço, deixava restos em cada cômodo do apartamento, e seu coração de papelão no corredor.
Austero, na sala, em frente à varanda, via a escuridão ceder à primeira luz do dia.
Via o negro tornar-se vermelhidão, e ouvia os primeiros sons do dia ganharem vida.
O elevador.
O balbuciar de conversa.
Ouvia levantarem no quarto ao lado.
Barulho de porta de armário, de chaleira apitando.
De salto de sapato agredindo o piso de madeira.
Portas.
Portas.
No corredor do oitavo andar o som habitual de latidos, agudos.
Ouvia a porta do elevador abrir e os passos quádruplos da poodle de dona Clara, que voltava do passeio matinal com seu animal, que costumava mijar naquele horário.
De repente, já em transe, entre a realidade e o sono, sentia forte passarem a mão em sua cabeça e espinha.
Não via quem era.
A besta.
Ouvia longe algo como “de novo o papel”.
Barulho de chaves.
O barulho do molho o confortava.
Ouvia abrirem a porta.
Quase todos os dias as saídas dos vizinhos coincidiam.
Bom dia, vizinho.
Quase todos os dias, em átimo, a cadela gritalhona entrava já na direção da sala, devoradora de felinos em direção ao bichano.
Esfinge churrasco de gato
Quase todos os dias, o gato, já com o radar em standby, e como em escapada de ninja, pulava por sobre os sofás, saltava na mesa de jantar e logo em cima do patamar mais alto da estante.
Não mais Dostoiévski. Agora Mutarelli.
Enquanto o cão, lá de baixo berrava.
Sem legenda
Ele, do alto, via todos saírem.
Ouvia trancarem a porta, abrirem a do elevador.
A conversa ia se desfazendo, se fragmentando.
Tudo parecia mais macio, mais suave.
A rigidez do móvel se transformava em veludo.
O radar se desligava, a barriga se tornava flácida.
As patas se aconchegavam, de lado; até que em um movimento de puro descaso virava a cabeça, se entortava para a direita, tornava-se curva e se entregava ao sono profundo com a barriga para cima.
O abajur, a concha, o saco plástico e o papel higiênico eram apenas coisas.
Os insetos e a grande besta se escondiam na claridade do dia; para na madrugada serem todos novamente descobertos.
Esfinge morta