terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Crítica de Paula Nogueira ao livro O Jornalista. (18-12-2012) Pagando as dívidas Estava devendo uma crítica por escrito a Edu Moreira. Após meses de hibernação, saiu do fundo da minha preguiça esse texto que dedico ao escritor que mais me fez refletir sobre questões literárias e não literárias, de vida e de morte, de presença e de ausência, sobre o tudo e o nada, de dentro pra fora e de fora pra dentro. Então, resolvi nesta tarde de segunda-feira escrever sobre esta violação da realidade. Vale a pena ressaltar que pela proximidade com o autor, procurei e o encontrei em alguma palavra - só ele diria isso desse jeito- e esquecia o escritor em muitas outras passagens. Essa, sem dúvida, é uma das características que tornou essa leitura tão intrigante. Mas adianto, as impressões que seguem são frutos de devaneios. Violação da realidade “O jornalista”, de Edu Moreira, além de nos levar ao centro de São Paulo com inscrições minuciosas, trazendo personagens tipicamente urbanas, provocando a imaginação cinematográfica, monta ousadamente a história de um homem perdido em espaços reais e imaginários que surta em meio ao caos. Entre notícias sem nenhum sensacionalismo, apenas com o asco do cotidiano, o narrador- personagem Lúcio tenta fugir da realidade, criando um mundo paralelo em que deixa sua imaginação esquizofrênica o libertar da vida patética que leva. Pode-se dizer que foi ele um jornalista até o momento em que estava preso à realidade, porém passa por um processo de desprendimento do mundo que o cerca mergulhando no “eu” até então não evidenciado. A partir daí, a personagem do jornalista frustrado ganha motivação para se movimentar nos espaços confusos entre mente e São Paulo: perseguindo, fugindo, gozando, vasculhando. O texto em primeira pessoa narrado de um quarto de hotel de beira de estrada deixa um fio de curiosidade no ar que permeia esta história. E aqui cabe uma observação interessante: Lúcio é narrador- personagem, mas também é observador quando o percebemos contando sua história para si, dando conta de detalhes intrínsecos às personagens. É genial esse caráter obscuro de um narrador onisciente em primeira pessoa. Então, as personagens vão surgindo por este fio e, cada vez mais, nos levando a procurar nelas uma parte de Lúcio que desabrocha. Edu Moreira sugere um olhar mais intimista ao deixar o tempo psicológico tomar conta da trama e se confundir com o tempo real, por vezes deixando um gostinho ácido no ar, como no capítulo em que ele deflora Cecília sobre a mesa da cozinha; os dois recitando dizeres do caderno de Lúcio. A cada visita a algum novo cenário, surge certa impressão de um ensimesmamento do narrador desprendendo-se da realidade e mergulhando na loucura. Essa loucura libertadora e que ao mesmo tempo o aprisiona. Liberta de sua vida pacata e sem propósito, de um paulistano frustrado, sem perspectiva alguma. Aprisiona em si, cada vez mais, em cada entrega dele ao contexto criado pela imaginação fértil em notícias inventadas, transformando a violação da realidade em sua própria realidade. E quantos de nós não praticamos essa fuga? Assim como para Lúcio, para cada um de nós o real está no que vemos e no que acreditamos. É mais normal do que parece – por vezes forjamos um cenário para nele viajar sem limites, esquecer os problemas do cotidiano acelerado em que vivemos, pessoas inertes, falsidade, incertezas, cauterizando as feridas abertas a cada constrangimento pelo qual inevitavelmente passamos todas as vezes que pensamos estar acertando o caminho da tal felicidade. Lúcio optou, pois, em não participar mais desse mundo para sentir-se vivo. Ele não suportava o mundo real, as pessoas do mundo real, os padrões do mundo real e o que ele se tornou nesse contexto. Penso na figura de um jornalista. Essa figura já remete a ideia de alguém que traduz o cotidiano de forma objetiva e pouco opinativa, apenas relatando os fatos e mantendo-se alheio. Uma voz. Como a voz muda de uma transmissão que não releva de fato a realidade, pois a notícia seria apenas um recorte dessa realidade. Esse recorte, em “O jornalista” passa a ser manipulável pela mente doentia de um homem perdido no tempo de seus delírios, passa a ser libertador. Convergindo para um questionamento do “eu”, talvez o mundo de Lúcio tenha sido criado dentro de um “Quem sou eu?” “O que sou eu no ambiente em que participo?” “Qual é o sentido dessa existência banal e parasita?”. Lúcio se reconhece em paralelo num todo - criador de seu ambiente- e no nada, abstendo-se da realidade. Devaneios a parte, a influência literária do autor é perceptível e admirável. E, se permitido, afirmo que é mesmo louvável. Dessa forma, apresentando certas pinceladas em passagens que nos deixam questionamentos a serem respondidos ao final da trama quando todas as pontas se atam. Diria que não passa despercebida a sua inspiração no estilo Mutarelli. Mas sem deixar de ser original e criativo. Uma literatura pós-moderna de primeira qualidade.